segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Diz o senso comum que cantar é, assim como chorar e rir, manifestação universal. Isola-se no entanto o dançar, já que, apesar de ser um inesgotável campo de estudos, quase sempre depende do estímulo da canção/música/ritmo, digo eu. Daí ter eleito apenas a canção pelo ângulo da sociocultura do grupo etno-linguístico Ovimbundu.

Como já referido em textos anteriores, a vivência é um recurso valioso onde a bibliografia escasseia. Recorrerei, pois, a memórias de infância na comuna do Monte Belo, município do Bocoio, em Benguela, que abandonei aos sete anos devido à guerra civil. Permitam-me vestir de aura positiva a máxima de que “se pode tirar a pessoa do mato, e não o mato da pessoa”, porquanto o conceito “mato” representa, no falar das nossas gentes, o meio rural e toda a sua mística – não necessariamente a selvajaria.

No “mato” ou kimbo, viver é cantar, havendo a destacar: (a) o campo da mobilização política e combativa, que não pode ser ignorado para a rigorosa compreensão da nossa história (fosse do lado do MPLA movimento, do governo, fosse do lado da Unita); (b) a dimensão social e antropológica – sobretudo no que à divisão de tarefas respeita –, no palco que é a pedra onde mulheres transformam milho em fuba, na ausência de moageiras industriais, ajustando golpes com o “upi” (piso) ao compasso de canções, quantas vezes a satirizar ou a condenar hábitos e acções (do indivíduo ao colectivo) com base no sistema de valores do meio, mas; (c) é na oralidade (batucadas, serão no onjango ou à volta da fogueira) que reside o motivo desta divagação.

Os contos, marcadamente fantásticos e melancólicos, só podiam ser partilhados de noite, nunca à luz do dia, sob o risco de crescerem chifres na cabeça do desobediente. Serviria o dogma para evitar a preguiça? Alguns deles, hoje, eu os assemelharia a filmes de terror. Havia também os românticos, os heróicos. Não raras vezes, pedíamos que nos repetissem essa ou aquela estória durante anos. Não vinham a seco, carregavam sempre uma canção ou mais que isso – já não sei se não era a canção que as carregava.

As canções são de indefectível harmonia melódica. Quanto à sua estrutura, o verso não é preocupação, pelo menos não literalmente como o conhecemos. São a mensagem objectiva e a lição subjacente o mais importante, onde o fragmentado, a parábola e o provérbio coabitam com o estilo canta-autor. Alguns nomes da música transportaram para discos a tradição, quer no conteúdo, quer na forma. É certo que a linha é ténue entre intervenção e tradição oral não engajada. Está aqui em causa o estilo corrido de narrar. Falemos a seguir de quatro nomes do planalto central (Huambo e Bié).

Zé Katchiungo, que se notabilizou pela música de resistência (na Jamba), é exímio contador de estórias e provérbios em tons bem dançantes, como são exemplos “ucinje uti wovava” e “ocikoko”. Bessa Teixeira é mais conhecido pela reedição de cantares populares do que por temas originais. Justino Handanga é outra pedra-angular, cuja marca é o cruzamento entre a recolha e o retrato social em prol dos mais desfavorecidos.

Por sua vez, Viñi-Viñi [cuja alcunha significa “Etc., Etc.], já falecido, narra peripécias de um contratado nas minas de ouro de Transvaal, à época colonial, bem como a humilhação que é a guerra: “Trititi, não chores mais/ porque o papá/ não tem pão/ para te dar/ (…) hu kalile vali, Ota, ndakava” [não chores mais, querido, estou cansado], sendo que “Trititi”, o nome da criança-personagem, é onomatopeia do ritmo de balas.

Ainda entre os consagrados, realce para Jacinto Tchipa, Sabino Henda e Flay, este último que tem incorporado em média uma música da nossa tradição em cada álbum, o que é pouco. Já o Ndaka Yo Wiñi, radicado em Luanda, bem como o Sukumunlã e o Kupeletela, de Benguela, são cantores e compositores cuja realização tarda tão-só pela miopia dos holofotes, tão focados no dançante, efémero e oco electrónico. Temos aqui os mais representativos continuadores, pelo que seria triste vê-los desistirem.

Os veteranos José Viola, César Cangue e Joaquim Viola, ligados à Rádio Nacional de Angola, têm lugar cativo na memória colectiva. “A monlange/ ku lilelile/ nyõhõ walinga ociwaya/ omangu yovowotele/ ka kuli u ka tumãla ko” [meu filho/ não chores/ a tua mãe tornou-se vadia/ cadeira de hotel/ não há quem lá não se sente], (Cangue); “Ame ame Ciyunge/ vatucita kavali/ Ciyunge/ vatutuma olongombe/ ove ekumbi lyainda” [Eu sou a Ciyunge/ Somos dois irmãos só/ mandam-nos pastar o gado/ quando já se pôs o sol], (de Joaquim Viola e reinterpretado pelas Jingas). Junta-se a eles o Fedy, autor do sucesso “Kalupeteka”, que muito contribuiu para a reconciliação nacional.

Vozes femininas são esporádicas. Surgiu Mila Melo com rapsódia nos anos 90. Há duas décadas surgiram Bela Chicola e Pérola. Patrícia Faria recuperou “Katalina”, do trecho “ka kwelele ongongo ka yilete” [quem nunca se casou não sabe o que é sofrer]. Kassova, de Benguela, e Edna Mateia, do Huambo, destacaram-se nos últimos anos enquanto vencedoras do concurso “Variante” em suas províncias. Há que segurá-las.

"Olohombo kepya/ kepya/ olomalanga vimbo/ Aci fu/ Aci mbê/ Avoyo/ twendainda ndeti". Este trecho é de uma dança folclórica em roda de mãos dadas, girando aos pulos num sentido, logo invertido mediante a lógica da mensagem quando se disser "twendainda ndeti" [o normal é irmos assim]. Segundo o Duo Canhoto, compilador da rapsódia "Omboyo" [o comboio], que ganhou maior visibilidade depois de ganhar de cantora Pérola uma roupagem comercial, a essência da parábola é: numa comunidade em guerra, os paradigmas funcionam de maneira inversa, onde, literalmente, os cabritos ficam na lavra, ao passo que as palancas ficam na aldeia. Trata-se de mais uma manifestação dos nossos antepassados contra a desordem inerente a lutas e conflitos. 

Há entretanto uma canção, também absorvida em pequeno, que desperta curiosidade pela preocupação que parece residir na concepção quanto ao ritmo e métrica. Cantada é ainda melhor, mas fiquemos pelo texto apenas, o único meio possível aqui:

Ondumbu wéh [lá o leão]/ Yalya, yalya, yamãlã [devorou a tudo e todos]/ Kulo ka yipitilã [aqui, porém, não chega]/ Ame wéh [eu cá] / Ndaimba odunge ocilavi [confio no material com que fiz o cerco] / Ondumbu yipita pi? [onde é que irá passar o leão?]

Termino, portanto, com duas perguntas de retórica: terá havido influência de algum “missionário” ocidental para a estética da rima? Pois não nos parece ser casual esta elaboração. Quando foi que surgiu a fábula desta canção atribuída à lebre?

Gociante Patissa, Benguela, 8 Junho 2011– 09 Fevereiro 2015

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